Ninguém vai acreditar que trocamos o “da” pelo “de”
«Ai, ai são trocas baldrocas,
Altas engenhocas
Que eles sabem inventar!
São palavras ocas,
Faz orelhas mocas,
Não te deixes enganar!.»
― Cândida Branca Flor, “Trocas
e Baldrocas”
Se, como canta Rui Veloso, «Ninguém vai acreditar / Que trocamos os vês
pelos bés.», tão-pouco vão acreditar que, na célebre a “lei da limitação de
mandatos”, se tenha trocado o “da” pelo “de”.
A Lei n.º 46/2005, de 29 de
Agosto, foi aprovada em 28 de Julho de 2005, sendo Presidente da Assembleia da
República Jaime Gama, e promulgada em 14 de Agosto de 2005, sendo Presidente da
República, Jorge Sampaio e Primeiro-Ministro José Sócrates. Note-se que,
naquele diploma, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2006, estabelece-se, no
seu artigo 1º, que «1- O presidente de
câmara municipal e o presidente de junta de freguesia só podem ser eleitos para
três mandatos consecutivos, salvo se no momento da entrada em vigor da presente
lei tiverem cumprido ou estiverem a cumprir, pelo menos, o 3.º mandato
consecutivo, circunstância em que poderão ser eleitos para mais um mandato
consecutivo.» (cf. Diário da República electrónico, I Série-A, n.º 165, de 29
de Agosto de 2005).
Muitos anos e polémicas depois, o
actual Presidente da República, Cavaco Silva, anunciou ter detectado um
conveniente “erro de publicação”: as preposições “de” não corresponderiam à
formulação original, aprovada na Assembleia de República, que conteria antes as
preposições “da”: presidente da câmara
municipal e presidente da junta de freguesia.
A Assembleia da República,
chamada a pronunciar-se, remeteu o assunto para a aplicação da lei: ou seja, para
os Tribunais.
Com o embuste presidencial e a hábil
posição dos partidos (no caso, disfarçados de Parlamento), o já inquinado
processo de limitação de mandatos sofreu uma machada final: já ninguém acredita que a lei seja para
cumprir. Tão-pouco acredita que, depois de tantas pressões do poder
político, os tribunais imponham, mais do que a letra, o espírito da lei: a renovação
de autarcas.
Trata-se, pois, duma expedita transferência
da questão do campo político para o campo judicial, com a vantagem de, a final,
os políticos justificarem-se com a decisão – que esperam “favorável” – dos Tribunais.
Esquecem-se, porventura, que as decisões que os Tribunais venham a tomar podem,
até, emprestar um manto de legalidade às candidaturas autárquicas, podem até
limpar a face dos candidatos e dos partidos, mas não limpam o carácter sórdido de
todos quantos se enleiam nas viscosas teias da farsa política.
À política o que é da política, à justiça o que é da justiça.