domingo, 6 de novembro de 2011

Viagens na minha terra

Através de um partido político, um indivíduo funcionalmente analfabeto é eleito (crê-se por essa soberana razão) vereador de uma câmara municipal de uma remota vila cujo nome não me lembro.

Como é curiosamente comum entre aquelas pessoas que a vida faz o favor de nos apresentar à distância, o mesmo indivíduo demonstra, por contraste com a própria envolvente social e económica que o gerou, uma ambição descontrolada, o apetite imbecil pelo lucro fácil e todo o apelo da fama reles.

Assim, constituído ministro de concelho, decide levar a cabo a sua primeira iniciativa política, de cariz monetarista: dirige-se a um banco e pede um empréstimo para comprar um carro; o que, de resto, lhe é concedido. Ora a aquisição do carro (imagine-se um belo carro), ainda que por esse método, impressiona bastante a simpática povoação que o viu nascer, e que passa a considerá-lo uma personalidade realmente impressionante.

De seguida, a troco de alguns secretos favores e de algumas garrafas de vinho, assume uma segunda medida política, agora de pendor social: arranja emprego ao filho de um sujeito incrivelmente obtuso e tragicamente insolvente (também por isso bastante popular no povoado) - como seu "adjunto".
O rapaz passa então da preguiça dos cafés e dos bares para os afãs de secretário, de assessor, de pau mandado... Em abono da verdade, ninguém ali sabe ao certo o que o rapaz é; e, menos ainda, o que o rapaz faz. Diz-se, até, maldosamente, que nem ele próprio sabe.

Mas, enfim, esqueçamos este diabo e voltemos ao encontro do outro, que, agora, no mais íntimo da sua soberba, sente que vingou décadas de miséria pessoal e familiar. Em sua justiça considera-se mesmo um ás! E na churrascaria que ainda frequenta, os empregados e o dono são exactamente dessa opinião.

Já na assembleia municipal - nessa prodigiosa fábrica de talentos políticos que é uma assembleia municipal - as opiniões nem sempre são consensuais.
Na ordem do dia discute-se, ao estilo de uma bela zaragata do Minho, a construção de uma infraestrutura desportiva, ou qualquer coisa parecida com isso, porque ali parece fazer muita falta a construção de uma infraestrutura desportiva ou de qualquer coisa que com isso se pareça.

O nosso personagem, vê-se, definitivamente, no seu elemento: e manifesta-se fervorosamente a favor da ideia da obra pública; do desporto em geral; do plano director municipal; dos regulamentos; da legalidade; da Constituição; da União Europeia... Do diabo a quatro! Tudo num discurso que parece que roça e esbarra com a mais lúgubre das bebedeiras... E, para reforço da sua posição, convoca duas linhas desse grande democrata que foi Maquiavel!... Linhas que, num dos seus regulares momentos de ócio, descortinou na tradução brasileira do wikiquote!, e depressa copiou para o iphone, como sendo seu emblema e divisa.

Faz-se silêncio na sala. Melhor dizendo: fica tudo rigorosamente aparvalhado. Ainda mais do que é costume. E perante o olhar lorpa daquela gente, o homem explica que acabava de invocar "um sábio"! "estrangeiro"!...
Os demais presentes, por alguns segundos, cofiam sombriamente os queixos e as cabeças e, por fim, alguém manda que se redija também aquilo «em acta», «para que conste», e prossegue-se responsavelmente com «a ordem de trabalhos».



(Publicado na «Revista do Advogado» de Novembro de 2011)

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